MOÇAMBIQUE, PRAIA DAS CHOCAS, 1972
Saint Exupéry dizia que os que partem deixam alguma coisa de si e levam alguma coisa de nós. Algo de nós parte com eles, algo deles fica connosco. A partida do Manuel – amigo de referência desde os meus verdes anos – trouxe-me à memória alguns momentos de camaradagem que ficarão comigo para sempre. É uma estratégia a que recorro para me compensar das perdas de amigos. Perdas frequentes, com o avançar dos anos. A velhice é um processo de perda, contínuo, com que temos de saber lidar. A ideia feita de que somos crianças duas vezes não tem substrato biológico, nem antropológico…
Na juventude vivi alguns anos próximo do Manuel. Nascemos na mesma aldeia e trilhámos os mesmos caminhos. Quando deparámos com arribas intransponíveis, parámos, de bússola na mão, para repensar o trajecto. A memória desses dias ficou agarrada à pele, entranhada até.
No Verão de 1972 passámos algumas semanas na praia das Chocas, junto à Ilha de Moçambique. Mais do que os dias, recordo as noites que se estendiam até à madrugada, discutindo filosofia, teologia e política. Nas matas do norte de Moçambique corria sangue. Entre o clero da diocese de Nampula grassava uma guerrilha surda, sem sangue, mas mortífera e demolidora.
Recordo um episódio daqueles dias. Numa palhota espaçosa, rente à praia, vivia uma figura singular, exótica, quase lendária. Era o alemão Grosh, que curtia a monotonia do tempo contemplando uma enorme jibóia que alimentava com frangos. Rodeado de livros, não tinha telefone nem rádio. Praticava diariamente mergulho de apneia, em busca de conchas raras que depois vendia a coleccionadores. Numa visita que lhe fizemos, contou-nos que tinha frequentado uma academia militar sob orientação de Hitler. Ali recebera formação política para ser Governador do Tanganica, caso a Alemanha ganhasse a Guerra; por isso, na década de quarenta, passara longo tempo ao largo da costa moçambicana, aguardando o fim do conflito. Incomodado por ouvir rasgados elogios ao Führer, o Manuel disparou: – Mas Hitler era um criminoso! E aí Grosh empertigou-se nos seus brios e, sacudindo os ombros, sentenciou, solene e enfático, com as vogais bem abertas e os erres tão ásperos que acordaram a jibóia: – «Hitlerr era um grrande homem! Quando há uma grrande homem, há semprre um filho dá puta que o segue e que o trrai! Jésus Crristo também não teve Judàs?!»… Esclarecida sobre a «grrandeza» de «Hitlerr», a jibóia remexeu-se e voltou ao sono. E nós voltámos à praia. Lembras-te, Manuel?
Estou redigindo este texto na Páscoa de 2018. Talvez por esta circunstância, ocorreu-me a estória do Grosh, que o Manuel gostava de contar. No tríduo pascal tenho reflectido sobre a morte e sobre o sentido da vida. É triste sentir que partiste, Manuel, que há uma dor cavada na tua família. Choca-me esta transitoriedade. Conforta-me a certeza de que a tua vida teve sentido.
a) Amadeu Gomes de Araújo